quarta-feira, 6 de maio de 2015

Justiça

Zelão era um perpétuo injustiçado. Descobriu sua condição logo em sua infância, na escola. Durante uma prova da Professora Abgail, Zelão notou que seus colegas colavam de forma descarada e até mesmo vergonhosa, sem maiores preocupações, e desse modo resolveu melhorar sua nota mediante rápida e discreta consulta ao seu material estudantil – no que foi flagrado e duramente repreendido, primeiro pela tirânica Professora, depois pela maligna Diretora, e por último, cúmulo da traição, pela própria mãe.

A injustiça perseguiu Zelão além da escola. Já na adolescência, um dia, numa longa fila, percebeu que ali se separavam claramente os perdedores, esperando passivamente sua vez, dos vencedores, aqueles com atitude para passar na frente de todos, pois seu tempo certamente era importante. O garoto percebeu que os perdedores se calavam, tímidos, temerosos, covardes, e isso lhe pareceu fazer todo sentido, porque se não fossem medrosos seriam vencedores – e passariam na frente. Como sabia que obviamente era um vencedor e merecia mais do que ficar com os perdedores, Zelão tomou coragem, saiu de sua posição e passou a frente de todos, se orgulhando do feito. Os perdedores, no entanto, não pareciam tão igualmente orgulhosos com a iniciativa, e como se aquela fosse a gota d’água (que de fato era), explodiram uma tempestade de insultos e ameaças contra ele, o conduzindo ao final da fila sob vaias, gritos de desaprovação e lições de moral, servindo sua humilhação para desestimular o aparecimento de novos vencedores, pelo menos naquela ocasião.

Zelão seria ainda outras vezes vítima da injustiça. Já adulto, no caminho de sua casa para o trabalho, haviam colocado um maldito semáforo, a pretexto de salvar pessoas. Mas parado pelo instrumento de tráfego diariamente, sentia como se seu tempo escorresse para o vácuo, importantes instantes sendo perdidos todos os dias esperando o brilho verde, minutos fundamentais nos quais poderia estar descobrindo a cura para moléstias fatais, determinando o sentido da vida, ou puxando papo com a nova secretária gostosa antes de começar o expediente, o que era mais provável.

Zelão não estava sozinho na sua revolta com o sinal luminoso, e constantemente observava algum colega motorista impunemente vencer a opressão da luz vermelha e resgatar parte do tempo perdido de uma vida. Seguindo o exemplo, decidiu ser esta a hora de agir, e ignorando corajosamente a luminescência rubra, colidiu violentamente com um ônibus, o que lhe causou ferimentos corporais e pesados prejuízos materiais, devidamente cobrados nos termos da legislação.

As injustiças sofridas por ele nunca foram suficientes para apaziguar seu desejo de equidade. Não seria a Professora Abgail, os perdedores da fila, ou um sinal de trânsito que lhe demoveriam de seu firme propósito de um dia conseguir receber a tão ansiada equiparação com aqueles que nunca respondiam cármica, moral ou legalmente.

Um dia conseguiria colar num exame, furar uma fila ou atravessar um sinal vermelho, sem qualquer tipo de castigo, como tantos a sua volta faziam. Quem sabe não poderia ir além? Subornar uma autoridade, apropriar-se de um objeto esquecido, levar um troco passado errado – os outros faziam tantas coisas sem serem aborrecidos... o céu era o limite. O consolo de Zelão era que todos os dias estacionava numa vaga de deficiente, sem nunca ser criticado, mas isso não contava depois do evento com o ônibus.

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Esse é um dos contos da obra Curtos Contos e uma Comprida Confissão, que pode ser adquirida aqui:
Curtos Contos e uma Comprida Confissão

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